O relógio já anunciava dez da noite naquele domingo e Cássio começava despedir-se de Lucília, dedicada estudante de enfermagem. A cena se repetia há sete anos. Quatro de namoro, três de noivado. Um beijo na testa, depois, um cada mão, para terminar, na boca. Mas sem língua porque o pai dela ficava esperando. Já na rua, buzinava com a moto que conseguiu comprar a uma porrada de prestações, graças ao trabalho no correio.
Voando baixo pelos corredores de automóveis, um pensamento lhe ocorreu: Amanhã seria segunda. Com certeza aquela menina apareceria para enviar uma carta. Há algumas semanas ela ia todas as segundas ao correio. Por um momento o tédio dominical foi embora e seu peito encheu-se de euforia. Só não entendia por que. Ela havia de ter no máximo uns 25 anos, era um pouco mal arrumada e tinha os cabelos lisos naturais sempre presos. Era tudo o que ele sabia sobre a menina. A não ser, é claro, que seu nome era Melissa, e que mantinha, com devoção, o hábito de enviar uma carta por semana a alguém chamado Gustavo, na Inglaterra.
Lá pelo meio dia, já sonhando com a quentinha que estava em banho-maria, Cássio viu o ônibus sair devagar do ponto e lá estava a moça, sozinha, procurando algo na bolsa. Perdeu a fome, carimbou o dedo, tirou os óculos. A menina achou um frasco de perfume, borrifou na carta, atravessou a rua e entrou na fila. O ambiente foi tomado por um cheiro doce e, com apenas duas pessoas na frente, ela conferia colocando a carta próxima ao nariz. Cássio teve uma vontade quase infantil de colocar a boca na carta, onde provavelmente ela teria encostado a dela. Chegou sua vez. Ele sorriu:
- Pra Inglaterra, de novo?
A falta de reciprocidade no sorriso o constrangeu. Fingiu que colocou a carta na pequena urna, mas deixou ao lado. A menina pagou e saiu. Cássio não conseguia pensar direito o resto do expediente, ficava indagado sobre a quantidade de desejos e idéias que aquela desconhecida lhe causava. Tinha vontade de tocar a mão dela ao pegar o dinheiro, ficava olhando sua boca e demorando pra fazer tudo. O toque no seu mindinho lhe era mais prazeroso do que todas as noites que conseguiu fugir com Lucília para o motel.
No fim do dia, pegou a carta, sentiu o cheiro e imaginou aquela menina, virou e leu de novo “Gustavo”... “Filho da puta de sorte”, “Quem será?”. Olhou o envelope contra a luz e pôde ver corações. Encheu-se de encanto. Ela havia de ser mesmo muito especial. Quem, em tempos de msn, sms e outras siglas mais, se prontificaria a escrever uma carta, colar corações, manchar com perfume as letras escritas à mão e ainda enviar uma diferente a cada semana?
No próximo domingo, lá estava na casa da noiva, sob o olhar atento do sogro, perguntou a ela se ele fosse pra fora do País, por qualquer motivo que fosse, se lhe escreveria cartas. Foi quando ela teve a brochante resposta:
- Ah Cássio, ir pra fora do País, com o que você ganha? Mais fácil eu mandar cartas se você for pra cadeia.
Aquele dia foi embora 21h30. Mal podia esperar a segunda feira para sentir de novo aquele cheiro doce e achava-se ridículo pelo ciúme que lhe acometia cada vez que pensava em quem seria o destinatário das cartas. Poderia ser um irmão, um primo, um soldado na família, sei lá... Consolava-se.
Segunda-feira a rotina se cumpria, mas dessa vez resolveu ousar. Tirou a aliança da mão direita, e se encheu de coragem quando chegou a vez dela. Gaguejou:
- Oi, você de novo.
- Carta prioritária, por favor. O prazo é de sete a 12 dias úteis para chegar, não é?
- Tem pressa? (pegando o dinheiro e encostando a mão suada nas costas da mão dela)
- Obrigada. Bom dia.
- Oi, você de novo.
- Carta prioritária, por favor. O prazo é de sete a 12 dias úteis para chegar, não é?
- Tem pressa? (pegando o dinheiro e encostando a mão suada nas costas da mão dela)
- Obrigada. Bom dia.
“ Ah que mulher”, pensou enquanto enfiava a carta debaixo da camiseta. Fim de expediente. Ficou sozinho no correio com a desculpa de pesquisar umas coisas na internet. Fez outro envelope com os dados contidos naquele de cheiro tão bom e abriu, afoito por confirmar suas fantasias. Nas palavras, um amor paciente e tranqüilo. E muito, muito real. Ela o esperaria por um ano, para que ele estudasse e trabalhasse na gringa.
Imaginou que o tal cara lá da puta que pariu poderia beijar aquela boca rosinha a hora que quisesse, poderia ter seu corpo, e sentir aquele cheiro. E devia gostar de ser alvo de todo aquele amor. Quanta injustiça. O cara devia enganá-la enquanto ela ficava aqui sozinha. Sim, porque ela não tinha cara de dadeira igual às minas da vila dele. E toda mulher tem sua vida sexual estampada na cara, achava ele.
Com a carta nas mãos, tremia e pensava alto. Foi quando seu chefe entrou de repente, estava lá para garantir a saída de Cássio, achou perigoso o funcionário ficar só. O pobre rapaz tentou disfarçar, se enrolou, tentou esconder a carta, mas não funcionou. Demitido. Sem grana e sem perspectiva, Lúcília deu-lhe um pé na bunda com o apoio do pai. Cássio se lembrou de quando era moleque e fazia uns graffitis. Chamado de vagabundo diariamente pela mãe, passava as tardes às voltas com sprays, rolinhos, estêncil e muitas cores.
Sua inspiração vinha sempre de Melissa, de sua devoção, as cartas partindo em navios e aviões, sua boca rosinha. Ficou famoso na vila, na cidade, e logo o chamaram pra participar de um filme publicitário. Mandava muito bem e havia esquecido disso. Tinha que trabalhar, pra casar, fazer o quê. O filme seria gravado no exterior e ele gastou a última grana que tinha pra tirar passaporte. E lá foi ele, rumo à Inglaterra. Ficava olhando os caras nas ruas e imaginando que todos poderiam ser o tal Gustavo.
Fez o filme, emendou em outro trampo, precisou tirar um visto para mais tempo. Ligou pra mãe no Brasil, vendeu a motoca e por lá ficou. Longe dos Correios, da noiva, nunca mais viu Melissa, apesar de sonhar com ela quase todas as noites. Ele só queria poder agradecer a mudança que ela sem querer ocasionou em sua vida com suas cartinhas.
5 comentários:
Que linda, que inspirada!! Uma história de amor muito bacana e envolvente!! Continue assim Má, enchendo nossos dias de encanto e imaginação!
Bjoka
esse em particular me deixou muito curioso.
Puxa, minha querida!
Que história mais fantástica!!
De onde surgiu essa inspiração? AMEI!
Beijos de luz,
Aline***
viajeii na historia,linda ,linda continua?
Findi bom beijus!
parabéns, amei !
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