
- Não tá conseguindo dormir?
- Não... Mas ainda prefiro esse momento a quando acordo, e fico na dúvida sobre minha realidade, tenho que pensar que sim, que tudo isso que me afugenta o sono realmente aconteceu... e aí contabilizo por quantos dias ainda acordarei tendo esse como o meu primeiro pensamento.
- Transmute em poesia. Pense como se fosse poesia, ficção. Leia mais Bukowski, Nelson Rodrigues, Henry Miller... Eles lhe darão ferramentas para atingir a baixeza de que necessita.
- Strogonoff de salame.
- Que nojo.
- É! Algumas coisas são maravilhosas, porém, incompatíveis! E não há solução. Eu adoro salame, adoro strogonoff. Agora imagina um strogonoff de salame, que coisa mais esquisita, não rola. O caminho do salame é a cerveja e o limão, o do strgonoff é o filé mignon!
- Quase poético.
-Quase tudo é sempre quase. Quase perfeito, quase feliz, eu quase gozei. Quase se escapa. Não fosse aquele segundo, não fosse minha audição perfeita, aquelas palavras... Estaria quase tudo em paz.
- Não estaria. Não tem saída. Deu-se por satisfeita em escapar de uma batida numa esquina, mas na próxima uma muito mais certeira a aguarda e lançará a sua cara de encontro ao meio fio. Não tem saída. Todos os caminhos levarão à mesma coisa. A mesma colisão, o mesmo fim.
- Eu sei e me sinto patética por insistir.
- Foi uma escolha.
- Patética.
- Deve ser respeitada.
- Lamentada.
- Respeitada. Não se culpe.
- Sabe por quantos momentos nos últimos tempos eu desejei a invisibilidade?
- Muitos.
- Esse é um. Sinto como nunca minha mortalidade.
- Você vai ter um bom ano, as mudanças que não soube operar em sua própria vida tomaram vontade própria e aconteceram com uma urgência dolorida, mas que passa e você sabe disso.
- Tenho pensado muitas coisas boas pras pessoas que eu gosto. Todas. E às vezes tenho a impressão que todo mundo tem um caminho e só eu que não.
- Você está livre para tomar o caminho que quiser.
- É mais fácil não ter caminho.
- Tô contigo, acredite que será um crescimento incalculável. Procure o silêncio.
- Você pode me dar licença um pouquinho então?
Apaga a luz.
Entra a música na voz de Elis Regina “ Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz/ Tenho que calar a voz, tenho que encontrar a paz/ Tenho que folgar os nós, dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios/ Tenho que esquecer a data, tenho que perder a conta/ Tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus.Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão que o diabo amassou/ Tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos dos meus sonhos/ Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/ E apesar do mal tamanho, alegrar meu coração.Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que me aventurar, tenho que subir aos céus, sem cordas prá segurar/ Tenho que dizer adeus, dar as contas, caminhar/ Decidido pela estrada, que ao findar não vai dar em nada, nada, nada, nada, nada, do que eu pensava encontrar.